segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Penitência - 2/3

Sabe? Aqui o tempo não passa, ele se arrasta e com muita má vontade. Tem um relógio pendurado na parede que tento ao máximo ignorá-lo, mas acho que por isso mesmo acabo sempre olhando para ele. Quando o tempo não passa olhar para um relógio é a pior coisa que se pode fazer, faz com que o tempo se arraste ainda mais lentamente e a irritação tome conta. Mas os olhos são muito traiçoeiros, nos denunciam aos outros e nos mostram aquilo que não queremos ver. Já até joguei a bandeja de comida nele para ver se eu conseguia quebrá-lo, mas é claro que a bandeja nem chegou perto e ganhei umas boas picadas e alguns dias de sono.

Tento um pouco de tudo para me distrair, mas quase nada é suficiente. É raro eu conseguir um jornal velho, uma revista esfarrapada ou uma cruzadinha antiga. Sempre peço, mas ninguém me escuta. Aliás, escutar escuta porque não é possível que todo mundo aqui seja surdo, mas se fazem de surdos. Às vezes o rapazinho esquisito me deixa alguma coisa e eu leio, releio, leio novamente sem me cansar – até cruzadinhas feitas eu já refiz. Sei que é estranho, mas me distrai um pouco e isso alivia o tempo. E o tempo insiste em ficar aqui comigo. Por mais que eu suplique para ele ir, ele fica. Isso vai me irritando, as dores vão contribuindo e aí, meu amigo, eu viro um bicho aqui, até que todo mundo fica de saco cheio e me apaga por alguns dias. Perco a noção do tempo, não desse que não passa, mas do dia da semana, do dia do mês. A gente fica meio zureta com essa falta de referência de calendário, mas por outro lado não me incomodo muito, não vou pra lugar nenhum mesmo...

O que ainda não perdi é a lucidez, eu acho. Me lembro de tudo da minha vida, me lembro de tudinho, desde menino até hoje. Isso quem garante é o tempo, não o do calendário, mas aquele que se arrasta. Quando ele vem e fica, ele conversa comigo, me conta tudo aquilo que já vivi. Do início ao fim, do fim ao início, do meio para o começo, de cabeça para baixo, de tudo quanto é jeito. Aí é inevitável, acabo me lembrando até de coisas que acho que nunca mais lembraria. Me lembro de quando eu era pequeno, bem menino, de quando eu era adolescente, de quando fiquei mais moço... Parece que sou o mesmo em todas estas fases, como se hoje eu ainda fosse o mesmo menino, no mesmo corpo. Mas as minhas mãos são as primeiras a me trair com suas rugas, com seus dedos tortos, com essas unhas amarelas e contorcidas. Fico aqui deitado revendo minha vida, imaginando as possibilidades, imaginando como seria se certas coisas fossem feitas, se outras fossem feitas de forma diferentes, são tantas coisas...

Escuta! Escuta! Está escutando? É... Um piano! Não sei de onde vem, deve ser de algum apartamento aqui por perto. Vem sempre nesta hora, no comecinho da noite; mas não todos os dias. Pelo jeito de tocar é alguém que está aprendendo ainda, algumas notas engasgam, outras saem do tom, percebeu? Mas para mim soa como um recital! Isso sim é algo que me dá prazer aqui neste lugar. Parece que o mundo para e se restringe a este espaço, nada mais existe e tudo fica em paz, só o piano, escuta!

Confiram também: Parte I - Parte III

32 comentários:

  1. Olá Rafael, vim ler o terço do meio rsrsrsrs e digo que vc bem em tocar piano pro pobre homem escutar...

    Abração
    Jan

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    1. Oi Jan!! rsrrs...que bom que veio....espero que esteja indo bem....rsrsrs...sim, já que eu ouvi, ele também tinha direito...rsrs

      Abraço!

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  2. Olha, to bem curiosa, já começo a imaginar onde vai dar toda essa tortura, e fico a pensar que você vai fazer uma grande surpresa pra gente com o desfecho dessa história, nada do que a gente ta imaginando. Muito mas muito legal!!Adoro isso!!
    Beijos
    Cris.

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    1. Ah tia....espero que seja mesmo um bom desfecho, desapontar agora vai ficar muito feio...rsrrs....mas vamos ver, tomara que seja mesmo!!

      Que bom que está gostando...tá muito gostoso pra mim também, ver vocês comentando e continuando...gostei!

      beijos

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  3. Quanta solidão pra esse pobre homem. Cada vez a história fica mais interessante, despertando várias questões e a maior delas, pelo menos pra mim, é a solidão dele. Onde estão os amigos, a família ou qualquer coisa assim? Enfim, falta só uma parte e muitas respostas. Bem curiosa aqui.

    Beijos, Rafael.

    www.eraoutravezamor.blogspot.com

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    1. Oi Mayra!!

      Muita né? Sim, tbm acho que a solidão é o mais importante aqui....sim, mais uma parte e não sei se todas as respostas...rsrsrs...que bom que está curiosa...isso está muito legal!

      Beijos e obrigado por acompanhar!

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  4. Oi Rafael tudo bem?
    Que texto interessante e pelo que vi não foi o primeiro. Lendo esse texto me senti um pouco na pele do personagem, e fiquei curiosa, ele por acaso esta preso? Mas de fato as vezes as horas nos fazem companhia e parecem não querer nem ao menos se arrastar. Mas ao menos em determinados momentos recebemos alguns presentes; o dele foi o som do piano e as lembranças, que fez com que as horas não se arrastassem tanto. Ótimo texto.
    Abraços,
    Amanda Almeida

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    1. Oi Amanda, tudo bem e você?

      Muito obrigado, que bom que gostou. A primeira parte está logo abaixo, foi publicada na semana passada, clique aqui Parte I), dará mais sentido a esta.
      Sim, os presentes dele foram estes... e o piano deve ter sido muito bom mesmo...

      Obrigado pela visita e pelo comentário, fico contente que tenha gostado!

      []s

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  5. Adorei o texto, emocionante, tocante e faz nos querer ler mais, sempre mais.

    Tenha uma ótima semana.

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    1. Oi Rapha!! que legal, obrigado, fico contente em saber disso!

      Ótima semana para você também!

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  6. Gosto muito de textos detalhados, pois a imaginação voa junto com estes detalhes. Assim, dá para imaginar onde se encontra o personagem e o que ele está sentindo. Por isso, eu gosto dos seus textos. Estou adorando o conto. Beijos.

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    1. Oi Aline!

      Nossa, que coisa boa de saber...gosto qdo alguém descreve sobre meus textos, pois assim dá para ter noção de como as coisas estão indo, principalmente quando é positivo..rssr...

      Fico muito contente com isso, obrigado!

      Beijos

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  7. É bom lembrar!
    Lembro de muita coisa de minha infância.
    Só que não sinto saudade, Vivi cada época no seu espaço certo na dosagem certa.
    Foi bom, porém agora quero tudo novo.
    Beijos!!

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    1. Boa, Janice...não é fácil fazer como vc fez, mas que faz um bem danado faz...

      huahuahauhaua...

      beijos e obrigado por acompanhar!

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  8. Jesus Cristo Rafa!!! Isso é uma gestação????????????????
    To Pasma!!! Será que é isso? Não! por favor não responda!! Mas se for puta que pariu que imaginação!!! Você é foda!!!rsrsrsrs
    Te amo
    Beijos
    Cris.

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    1. hauhauahua...que legal, tia!! mas não é não...rsrsrsr...fui longe, né? O duro é que muitas vezes, no ir e vir, no banheiro, algum momento em que não posso anotar, passa uma história inteira na minha cabeça e acaba se perdendo...rsrs...

      Brigadão! Tbm te amo!!

      Beijos

      P.S.: respondi um comentário de um Cris (lá em cima) achando que era vc...rsrsrs

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  9. Sim lá em cima sou eu mesma é que movida pela curiosidade fico lendo e tentando descobrir o que vai acontecer. Adoro um suspense, nossa Rafa e não parece mesmo uma gestação??? Poderia ser neh? mas se não é continua a minha tortura até a parte 3. Então vamos aguardar.
    Beijos querido.
    Cris.

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    1. ah tá tia...hahahaha....entendi... ufa!
      poderia sim...rsrsr...mas vamos à tortura...rsrsrs..

      beijos tia!

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  10. Olá Rafael! Que prazer passear por aqui, encontrar este tempo embutido nas tuas palavras de tantas reflexões. É verdade! O tempo nos arrasta, faz arruaça em nós, deixa os dedos tortos; contudo, o danado é bom! Mistura nostalgia ensinando-nos aprimora-lo; pois ele é o mesmo que se repete a todo instante, é o mesmo que nos arrasta numa devassa de palavras para o amanhecer…

    Um grande abraço
    Ah, uma dúvida: Vi uma pessoa parecida com você na Casa das Rosas no dia do aniversário de São Paulo (Evento). Minha timidez não me deixou tirar as dúvidas... rsr

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    1. Oi Vitor!
      Que bom que passou por aqui e gostou...sim, precisa-se aprender a usar este danado...rsrs...

      Humm...não era eu não, Vitor...até fiquei por aqui no aniversário de São Paulo, mas não passei por lá não...deve ser algum sósia..hehehe

      Abraço!

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  11. Oi,vim retribuir o seu comentário!
    Achei muito bom o texto,todo mundo tem um momento na vida que para
    pra refletir sobre suas escolhas,mais no caso dele parece que já é meio tarde,pra mudar,então ele vive as consequências.

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    1. Olá!!

      Seja bem-vindo!

      É, temos que ter estes momentos para avaliar se o caminho está bom, ou se precisamos de algum desvio....
      Sim, exatamente...ele já está nas consequências...

      Obrigado, fico contente que tenha gostado!

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  12. Rafael, bom dia!!
    Primeiramente quero agradecer a sua visita. =)
    Tem muito texto interessante aqui no seu blog, acho que terei que vir todos os dias pra ler, pois adoro ler...
    A respeito do 'tempo' dito no texto acima...minha vida ultimamente tem sido bem parecido com o que descreveu. Ao mesmo tempo em que penso que o tempo (a vida) está passando rápido demais, eu luto todos os dias e principalmente noites pra tentar utilizar o tempo que tenho em coisas que desviam o meu pensamento dos problemas. Uma fuga eu sei, mas no momento embora eu não devesse, é o que consigo fazer e muito bem, fugir dos meus problemas. Espero que esta fase ruim passe.
    É isso...belo texto!
    Beijos

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    1. Olá Anny! bom-dia! Eu que agradeço a visita e comentário!

      É, acho que tem algumas coisas por aqui sim, já são quase cinco anos de blog (tô ficando velho).

      Essa luta tem sido geral, lhe garanto. O dia passa, fazemos tanta coisa e tantas outras coisas ficam para trás. Quanto à fuga, não existe quem não recorra a ela, às vezes é na fuga que encontramos soluções e forças para enfrentar o resto. Mas passa sim!

      Obrigado, fico contente que tenha gostado.

      beijos

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  13. Dá pra sentir a sinuosidade do sentimento que se alterna num ambiente tão inóspito. Tanta coisa passeia pela mente. Reflexões nascidas das observações que sentenciam a cada momento a alternância do lugar. Dor e aflição. Sossego na latência de uma lucidez vaga, mas penitenciada com a atmosfera do ambiente, regado pelo tétrico tempo que ali caminha...

    Bonito conto Rafael. Dá pra sentir a intensidade pulando nas letras. Sentimento carregado. Muito belo.

    Vim aqui retribuir a sua visita no meu blog. E gostei daqui. Volte pra me visitar. Será um prazer.

    Abraço!!

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    1. Oi Alexandre!

      Caramba, que coisa legal de se saber, fiquei muito contente com sua descrição e de saber que consegui fazer esta "misturança" toda que era minha intenção.

      Muito obrigado mesmo, que bom que gostou...seja bem-vindo, puxe uma cadeira e fique à vontade!

      Abraço!

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  14. Olá, Rafael!
    Fiquei sem comentar um tempo, mas não pense que deixei de seguir o DMU. Estou ansioso pela terceira parte do conto.
    Um abraço!

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    1. Grande Marcão!

      Fique tranquilo, sabemos como é a correria e a dificuldade de estarmos em todos os blogs que gostaríamos, mas aos poucos vamos nos vendo...

      Abração!

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  15. Rafael,
    fiquei na dúvida se meu comentário deu certo, por isso estou comentando de novo.
    Estou ansioso para ler a terceira parte do conto.
    Abraço.

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    1. Deu sim, Marcão! é que até para moderar meus comentários estou enrolado..rrsrs...amanhã vem a terceira e última parte, espero que feche bem!

      Abraço!

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